
Mais que judiciais, os AJ´s precisam ser administradores: um olhar crítico e colaborativo sobre a realidade das recuperações judiciais no Brasil
Por Marcos A. Françóia – GRUPO MBF PARTNERS – Executivo e Administrador Judicial
A Recuperação Judicial (RJ), prevista pela Lei nº 11.101/2005, é um instrumento valioso de preservação da atividade econômica e dos empregos para empresas que estão em momento de pressão de seu resultado operacional por dívidas acumuladas. No entanto, sua eficácia depende diretamente da atuação qualificada e comprometida dos diversos atores envolvidos: os advogados, que articulam a defesa e a estratégia jurídica, sejam representantes da(s) recuperanda(s) ou procuradores dos credores; as consultorias econômicas e de gestão que, como grandes aliadas em cenários de reestruturação, mapeiam a situação econômica, identificam os pontos de ruptura e viabilizam tecnicamente a recuperação ou indicam outra saída negocial; e a própria Justiça, representada pelo Administrador Judicial (AJ), que, não apenas como uma extensão dos olhos do magistrado, deve ter uma atuação proporcional e ativa, contribuindo de forma técnica, multidisciplinar, mediadora e responsável com o processo, além do D. Magistrado da causa.
A entrada em vigor do art. 51-A da Lei nº 11.101/2005, com a exigência da perícia prévia como condição para o deferimento do processamento da recuperação judicial, trouxe uma importante mudança de paradigma no sistema recuperacional brasileiro. Já na partida dos trabalhos, mais do que analisar requisitos formais, como a apresentação de balanços, lista de credores ou certidões, o Judiciário, por meio do perito nomeado — muitas vezes a futura administração judicial, tem de fato a possibilidade de avaliar se há viabilidade concreta de soerguimento da empresa.
Porém, essa mudança exige uma atuação técnica e estratégica, especialmente da administração judicial, cuja função ultrapassa o antigo papel de intermediária entre devedor, credores e juiz. A administração judicial hoje precisa ser, antes de tudo, um analista de negócios. É quem, na prática, ajuda a Justiça a decidir se aquela empresa tem mesmo potencial de recuperação. E é nessa hora que uma administração judicial com conhecimento técnico, prático e acadêmico faz a diferença, pois na perícia prévia o tempo para analisar e dar segurança ao judiciário sobre a real necessidade e legalidade do pedido de RJ é muito curto e, se não feito com agilidade e conhecimento técnico, pode prejudicar o processo, trazendo prejuízos aos devedores e aos credores, dependendo do caso.
Este artigo propõe uma reflexão crítica, mas propositiva, sobre a necessidade de uma readequação do perfil e da função da Administração Judicial no contexto da crise empresarial brasileira. Perfil e função com o enfoque judicial, pois estamos tratando de uma lei, mas com uma visão econômica prática de gestão empresarial. Função que exige um aparato de equipes multidisciplinares — combinação de competências nos âmbitos jurídico, econômico e de gestão de crises — que tragam, de fato, soluções efetivas para os processos de recuperação judicial. Que realizem a intermediação entre recuperandas, credores e a própria Justiça, não se limitando apenas a interpretar e aplicar a lei, mas também atentando-se às nuances de cada caso, às particularidades que apenas com conhecimento técnico e uma experiência prática e densa no universo empresarial poderiam ser percebidas e promovidas.
Assim como trata o artigo 56, no âmbito do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref) – recomendação CNJ no 56/2019 – sobre a especialização de varas judiciárias em matérias de direito empresarial, visando criar varas especialistas em recuperação judicial e falência, para melhorar a eficiência e a qualidade das decisões nesse campo do direito, também os administradores judiciais devem ser especializados.
Afinal, estamos falando da responsabilidade de determinar o destino de empresas que possuem os mais distintos perfis, que vão de micro e pequenas empresas — o coração pulsante da economia brasileira, que chegaram a representar 80% dos pedidos de RJ em 2025 — àquelas que possuem um passivo complexo, seja pelo montante da dívida, seja pelo volume de credores e até mesmo complexidade em sua atividade operacional.
A Lei nº 11.101/2005, em seu artigo 22, determina que compete ao Administrador Judicial fiscalizar as atividades da empresa durante o processo. Contudo, o termo “fiscalizar” não deve ser interpretado de forma simplista ou meramente documental. No rigor da definição, fiscalizar é vigiar, observar atentamente e, frise-se, examinar e verificar. Ou seja, ser fiscal não é apenas conferir se os documentos foram entregues ou protocolados corretamente, mas sim analisar o conteúdo desses documentos: a veracidade dos relatórios gerenciais, a consistência dos registros contábeis e do fluxo de caixa, a legalidade das demonstrações financeiras, a movimentação dos extratos bancários, os comprovantes de pagamento, o planejamento financeiro e tributário, a movimentação do fundo fixo (caixa), os passivos ocultos e os elementos que compõem a realidade da empresa, inclusive no seu ambiente produtivo e comercial.
Além disso, é preciso compreender que a proteção legal, o chamado stay period, conferida pela Justiça ao deferir o processamento da RJ — que reúne todos os credores à mesa e suspende temporariamente execuções — já é um direito garantido por lei, e não depende da nomeação do administrador judicial. Portanto, se este é parte ativa do processo, que o profissional seja investido da autoridade técnica para sugerir, mediar e direcionar com legitimidade, sem necessariamente ter poder de mando ou de assinatura nos atos da empresa.
Essa postura requer profundidade técnica e, acima de tudo, sensibilidade para compreender que os problemas financeiros de uma empresa geralmente são apenas a face visível de uma crise muito mais profunda. Crises surgem, muitas vezes, de processos internos mal elaborados, políticas de precificação equivocadas, concorrência desleal, ausência de indicadores de desempenho, estruturas societárias frágeis e, principalmente, de componentes emocionais não reconhecidos. Sócios em conflito, disputas por poder, vaidades exacerbadas e decisões tomadas com base no ego e não em dados técnicos são causas reais da maioria das crises que acompanhamos.
Muitos tribunais já começam a perceber que o êxito de uma recuperação judicial depende diretamente da qualificação do administrador judicial nomeado. Não se trata apenas de escolher alguém com conhecimento jurídico; o AJ ideal precisa ter experiência prática de gestão empresarial, saber interpretar relatórios contábeis, lidar com projeções financeiras e, sobretudo, entender de pessoas — pois a crise empresarial é, quase sempre, também uma crise humana.
Um AJ tecnicamente bem-preparado precisa ter, portanto, a capacidade de escutar as dores da empresa e saber se posicionar perante a direção no sentido de mostrar as falhas e até, por que não, os possíveis caminhos para a melhor saída da crise e não ser mero figurante fiscalizador. E isso não é tratado nos cursos de AJ´s ou estão nos livros ou nos demonstrativos contábeis: está no comportamento, na dinâmica interna, na cultura organizacional e na história de cada empreendimento, que somente um profissional qualificado pode avaliar e compreender. Muitas vezes, não é visível em uma visita técnica de meio período para fotografar e coletar dados.
É fundamental que haja uma ação integrada entre os diversos envolvidos no processo de RJ. Falamos aqui de economistas, advogados, contadores, gestores, especialistas em negociação e, principalmente, do profissional que deverá liderar esta equipe técnica por meio de uma visão sistêmica, capaz de orquestrar todos esses saberes. Diferentemente do senso comum, que vê o AJ como um mero fiscal que presta contas ao Juiz, a nova realidade mostra que os melhores resultados vêm de administradores judiciais que lideram equipes multidisciplinares, todos com experiência de campo, muitos com histórico em cargos de gestão em empresas privadas e públicas.
Esses profissionais não apenas cumprem prazos e juntam relatórios aos autos. Eles analisam a operação, os indicadores, indicam possibilidades de melhorias e acompanham de perto a execução do plano, garantindo que a recuperação não fique só no papel. Sem interferir ou exigir mudanças, mostram soluções que podem ou não ser acatadas pelas empresas, mas que, em muitos casos — principalmente em empresas menores —, acabam sendo uma fonte de respostas no enfrentamento da crise.
Outro ponto que merece atenção é a forma como são tratados os documentos e dados empresariais juntados aos autos. Em diversos processos, observa-se a inclusão de informações sensíveis, como listas de clientes, propostas comerciais, políticas de preços, holerites e contratos, que, mesmo sob sigilo, acabam acessíveis a advogados que podem ter ligação com empresas concorrentes. Imaginem o impacto disso em um setor de alta tecnologia, com disputa por profissionais qualificados e concorrência, por vezes, desleal. Além disso, muitas dessas informações vêm acompanhadas de dados como CPF, CNPJ e endereços, que atualmente podem ser usados para golpes diversos, publicações que ferem a Lei Geral de Proteção de Dados e que poderiam permanecer apenas nas mãos do Administrador Judicial, que comprovaria o recebimento.
Esse tipo de exposição pode comprometer significativamente a continuidade da empresa, prejudicando seu posicionamento de mercado, a relação com clientes e fornecedores e até sua capacidade de manter talentos estratégicos. Cabe ao AJ exercer critério, bom senso e, principalmente, responsabilidade técnica ao decidir o que de fato deve ser levado aos autos. O sigilo legal (art. 189, IV, do CPC) não elimina o risco competitivo e, por isso, exige uma análise prudente, evitando até mesmo o tumulto documental no processo. Sendo o AJ um profissional qualificado e de boa-fé, nomeado pela Justiça, deveria se responsabilizar pelo recebimento, análise, compreensão e guarda dos documentos recebidos, solicitando esclarecimentos de pontos duvidosos ou conflituosos, indo para os autos somente se, de fato, identificar possíveis fraudes e/ou prejuízos aos credores. Entendo que, em casos como o da lista nominal de funcionários, com respectivos salários, benefícios e encargos, a versão completa deveria ficar de posse do AJ, sendo ocultadas dos autos tais informações, divulgando-se apenas uma versão genérica para consulta pelas partes sobre a composição da lista. Procedimentos precisam ser criados para isso.
Um aspecto frequentemente negligenciado é o custo logístico associado à contratação de administradores judiciais distantes da região da empresa em crise. Mais que o tempo de viagem, que se torna contraprodutivo ao próprio AJ, em vários processos — principalmente os de menor endividamento —, despesas com deslocamento, hospedagem e alimentação chegam a representar entre 15% e 20% dos honorários mensais do AJ, valor pago por empresas que, em sua maioria, estão reduzindo drasticamente suas estruturas para sobreviver. A regionalização da atuação do AJ, desde que feita com critérios técnicos, pode representar uma solução inteligente e econômica. Consultores e AJs com base regional conhecem a realidade produtiva local, possuem maior acessibilidade, reduzem custos e podem acompanhar mais de perto o desenvolvimento do plano de recuperação. Uma atuação presente e frequente faz toda a diferença.
Este artigo não tem como objetivo criticar, mas sim construir. É um convite ao Judiciário e aos demais operadores do Direito Empresarial para repensar os critérios de nomeação de AJ´s, incentivando a seleção de profissionais com vivência técnica e com estruturas capacitadas para atuar de forma integrada, propositiva e eficiente. A Recuperação Judicial é um meio, e não um fim. Quando bem conduzida, é capaz de transformar empresas, preservar milhares de empregos e reconstruir histórias. Para isso, é preciso mais que fiscalização.
Marcos Françóia é sócio/diretor da MBF Partners, Perito e Administrador Judicial, professor universitário e atua como executivo nas áreas financeira e de controladoria. É Bacharel em Ciências Contábeis, com Pós-Graduação em Engenharia Econômica; Pós-Graduação em Controladoria; MBA Executivo Internacional – FGV/RJ; MBA Corporativo – FGV/OHIO UNIVERSITY; Pós-Graduado em Gestão Empresarial com Ênfase em Recursos Humanos/FGV; Master e Training em Programação Neolinguística; MBA em Agroenergia – ESALQ/USP e Pós-Graduado em Mediação e Resolução de Conflitos e Pós-Graduado em Direito Sistêmico.
Para saber mais acerca do tema recuperação judicial, acesse os demais textos disponíveis na Home deste site.
